sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Consumismo e Violência

O consumismo predomina como fator de inclusão social e satisfação de necessidades emocionais. Impulsionam uma sequência frustração e novos desejos fabricados pela propaganda. A violência tem forte ligação com este processo. Convido-os a lerem os artigos abaixo do Le Monde Diplomatique.


04 de Dezembro de 2008

Consumismo infantil
Em nossa sociedade há um verdadeiro exército publicitário trabalhando ininterruptamente para convencer as crianças a comprar toda sorte de produtos, em especial durante o Natal. Com fotos bem produzidas e indicações de artistas renomados, a propaganda adentra suas defesas psíquicas ainda frágeis e promove ilusões
por Yves de La Taille
Enquanto milhares de pais e mães vão freneticamente às compras para adquirir os presentes “encomendados” pelos filhos – talvez menos freneticamente neste final de ano em razão da chamada “crise financeira” –, poucos deles sabem que está em discussão, no Brasil e no mundo, a problemática relação infância-consumo e a questão da publicidade dirigida ao público infantil. Quanto a este último tema, aliás, existe um projeto de lei em Brasília que visa coibir esse tipo de publicidade, cuja existência parece ser “natural” para muitos e até desejada por aqueles que, no lugar de pais, exultam com a simples perspectiva de seus filhos aparecerem como garotos propaganda ou que, no lugar de empresários, antevêem gordos lucros graças a esse amplo espectro de jovens consumidores.

À guisa de fio condutor do presente artigo, tomemos a questão da publicidade dirigida ao público infantil, pois ele nos levará necessariamente à questão da relação infância/consumo.

São dois os objetivos básicos da publicidade: 1) informar que tal produto ou serviço existe com tais e tais qualidades, e 2) convencer o virtual consumidor a adquiri-lo. Dos dois objetivos, o segundo é o mais importante e é em torno dele que inúmeros especialistas de marketing queimam as pestanas. Mas vale notar que o primeiro, não raramente, limita-se à mera informação de que um produto existe, pois nada se diz a respeito de suas qualidades. Acontece, por exemplo, em várias propagandas de carro, nas quais o veículo é mostrado em cenas idílicas, sem que nada de objetivo se fale sobre suas virtudes. Se nada falam do automóvel, em compensação sugerem que seu virtual comprador tem ou terá determinado tipo de identidade, em geral associada ao status de pessoa feliz, pois “vencedora”. Mas tal associação já é a tradução do segundo objetivo: seduzir o consumidor.

Isto posto, espera-se de um adulto que tenha recursos intelectuais e afetivos para resistir à sedução publicitária, notadamente quando essas fogem totalmente a qualquer verossimilhança com a vida real. Mas qual será o poder de resistência de uma criança?

Ele é naturalmente menor. A criança carece, em parte, de critérios para avaliar se os brinquedos que ela vê, sabiamente fotografados ou filmados terão, na prática, as qualidades lúdicas apresentadas. Com freqüência, uma vez que tem o brinquedo nas mãos, ela fica desapontada e o abandona no baú dos objetos rejeitados ou esquecidos.

A criança também carece de critérios próprios para avaliar se cada objeto corresponde ao que ela realmente desejaria: suas vontades ainda costumam ser fugazes e, logo, facilmente dirigidas por especialistas em sedução. Outra vez aquilo que é intensamente querido num dado momento, logo cai no esquecimento, trocado por outra coisa eleita como alvo prioritário do desejo momentâneo. Finalmente, também devemos lembrar que a criança ainda é muito suscetível à influência de “celebridades”. Não é por acaso que se contratam “ídolos” para cantar as vantagens de variados produtos e se estampa seu rosto e nome nas embalagens ou até nos próprios produtos.

Em suma, existe um verdadeiro “exército simbólico” que adentra as defesas psíquicas ainda frágeis das crianças, para convencê-las a comprar isto e aquilo. Portanto, têm toda a razão as pessoas que querem, no limite do possível, protegê-las. E têm toda a razão, também, as pessoas que lamentam que, em tempos de Natal, o simpático Papai Noel tenha se transformado, de portador de esperanças e surpresas, em mero entregador de encomendas.

Sigamos adiante em nossas observações e notemos que, para além dos problemas que a suspeita sedução publicitária dirigida a crianças levanta, sua própria existência equivale a um forte incentivo ao consumo.

Vivemos numa sociedade que se convencionou chamar de sociedade de consumo, e, é claro, dela participam as crianças. Não poderia ser diferente e não se trata, portanto, de isolá-las do mundo, como o fez hipoteticamente Rousseau com Emile. Todavia, trata-se de prepará-las para serem consumidores conscientes. Mas, o que significa isso?

Significa, por exemplo, fazê-las paulatinamente compreender as relações entre consumo, trabalho e economia, para terem consciência do real valor das mercadorias e não pagarem, como o fazem tantos adultos de conta bancária abastada, preços claramente abusivos somente porque determinados produtos são vendidos em tal lugar ou produzidos por tal marca. E também para terem consciência dos graves problemas de distribuição de renda, que dão o luxo a poucos e o lixo a muitos. Há, no Brasil, uma proposta de Parâmetros Curriculares Nacionais que propõe trabalhar, desde o ensino fundamental, o tema “Trabalho e Consumo”. Trata-se de excelente iniciativa, infelizmente pouco conhecida.

Significado psicológicoComo é impossível desvincular o consumo da saúde ambiental de nosso planeta, ser consumidor consciente significa também avaliar as conseqüências de seus atos de compra e usufruto. Dizem os especialistas que se todos tivessem o modo de vida dos habitantes dos Estados Unidos, seriam necessários quatro ou mais planetas Terra para contemplar a demanda.

E ser consumidor consciente é também avaliar o significado psicológico do ato de consumir, ato esse que, sabe-se, é para muitos, na contemporaneidade, um ato frequentemente desvinculado de necessidades concretas, materiais. E aqui o tema se torna complexo e delicado.

Muitos já estudaram e analisaram os motivos que levam as pessoas a se entregarem a uma verdadeira bulimia de consumo. Há várias teorias, todas certamente com sua parte de verdade. Pessoalmente, me inclino a ver no afã de consumir um traço do que chamei de “cultura da vaidade”1, pois faz todo sentido o seguinte diagnóstico de Jurandir Freire Costa: “O objeto (que é consumido) deve ‘agregar’ valor social – e não sentimental – a seu portador, ou seja, deve ser um crachá, um passaporte que identifica o turista vencedor em qualquer lugar, situação ou momento da vida”2. Consome-se, entre outros motivos, para poder dar um “espetáculo de si”, para demarcar-se, para parecer (ou mimar) os “vencedores” e as “celebridades”. E isso não vale apenas para as classes sociais financeiramente abastadas, pois, como escrevem os autores do livro Cabeça de porco: “O dinheiro obtido no assalto troca-se pelo tênis de marca, pela camisa de marca. Essa frivolidade é uma pista. A camisa com nome e sobrenome e o tênis notabilizado pelopedigree apontam numa direção: a grana vai para a marca, não para o calçado ou a camisa, não para o atendimento a necessidades físicas, como a simples proteção do corpo e dos pés. No caso, o que está em jogo é a busca de reconhecimento e valorização, a marca é o que importa, é a marca o objeto cobiçado, é ela que atende à necessidade. O vestuário (na moda) cumpre essa função: quem o consome deseja diferenciar-se para se destacar”3.

Um desenho humorístico, assinado por Voutch e publicado na revista francesa Le Point, ilustra bem, a meu ver, um aspecto essencial do consumismo atual. Nele vê-se um homem com certo ar de dúvida contemplando, numa revendedora, um desses carros altos e poderosos, 4x4, que têm circulado muito pelas ruas e estradas, atualmente. O vendedor lhe apresenta um argumento “definitivo”: “a relação preço/arrogância é muito vantajosa!”.

Esperemos que nossos filhos, quando forem adultos, exijam ouvir argumentos mais decentes dos vendedores! Isso depende muito de nossas atitudes educativas. Mas quando vejo garotos e garotas, vestidos com roupa de grife, com tênis importado, celular de última geração na mão – como o iPhone –, câmera digital pendurada no pescoço etc., temo não estarmos na direção pedagógica correta.

E de pouco adiantarão leis que coíbam a publicidade dirigida ao público infantil, se os próprios adultos, entregues ao consumismo e à cultura da vaidade, forem às compras, motivados e seduzidos pela imagem que seus filhos, destinatários dos presentes natalinos, terão diante de outras crianças.

Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

1          Yves de La Taille, Formação ética: do tédio ao respeito de si, Porto Alegre, Artmed, 2009.
2          Jurandir Freire Costa, O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo, Rio de Janeiro, Garamond, 2004. O autor emprega o termo “turista” no sentido metafórico que lhe deu Bauman: a do homem pós-moderno, que deambula pelo planeta sem amarras e nem projetos de médio e longo prazo.
3          Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celos Athayde, Cabeça de porco, Rio de Janeiro, Objetiva, 2005.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

04 de Dezembro de 2008
A alma do consumo
A era hipermoderna se dá sob o signo do excesso e do extremo: não sabemos ao certo onde termina a necessidade e onde começa o supérfluo. A vontade de saber, a vontade de se relacionar, a vontade de viver e a vontade de lazer foram absorvidas pela lógica do consumo
por Gustavo Barcellos
Todos os dias, em algum nível, o consumo atinge nossa vida, modifica nossas relações, gera e rege sentimentos, engendra fantasias, aciona comportamentos, faz sofrer, faz gozar. Às vezes constrangendo-nos em nossas ações no mundo, humilhando e aprisionando, às vezes ampliando nossa imaginação e nossa capacidade de desejar, consumimos e somos consumidos.

Numa época toda codificada como a nossa, o código da alma (o código do ser) virou código do consumidor! Fascínio pelo consumo, fascínio do consumo. Felicidade, luxo, bem-estar, boa forma, lazer, elevação espiritual, saúde, turismo, sexo, família e corpo são hoje commodities reféns da engrenagem do consumo. Podemos falar, como os filósofos e sociólogos contemporâneos, de um hiperconsumo?

O consumo não pertence a todas as épocas nem a todas as civilizações. Somente há pouco tempo histórico é que falamos e entendemos viver numa sociedade de consumo, onde tudo parece adaptar-se à lógica dessa racionalidade, ou seja, à esfera do lucro e do ganho, à ética e à estética das trocas pagas. É uma singularidade histórica. Tornamo-nosHomo consumericus.

Num plano mais profundamente psicológico, que racionalidade é esta, a do hiperconsumo? Que deuses estão ali abatidos? Que arquétipos? Para ecoarmos os receios de Jung sobre deuses e doenças1, que doença é esta, a paixão consumista, tão absorvente, tão aparente, tão definidora?

O consumo é uma forma modificada e moderna de estabelecer relações com o mundo dos objetos e dos seres, e também com o mundo da interioridade. A vontade de saber, a vontade de se relacionar, a vontade de viver, a vontade de lazer, foram absorvidas por essa lógica.

Para uma psicologia arquetípica, há deuses em nosso consumo: Afrodite da sedução e do encantamento pela beleza e pelo prazer, Hermes do comércio e da troca intensa, Cronos do devoramento, Plutão da riqueza e da abundância, Criança Divina da novidade, Dioniso do arrebatamento, Narciso ensimesmado, Herói furioso, Eros apaixonado, Pan, Príapo, Puer, quem mais? Que pessoas arquetípicas estão na alma do consumo?

Ao buscarmos pela alma do consumo, lançamo-nos, sempre mais desconfortavelmente, no jogo entre necessidade e supérfluo, entre frívolo e essencial. Não sabemos ao certo onde termina a necessidade, onde começa o supérfluo, onde estão as fronteiras entre consumo de necessidade e consumo de gosto, consumo consciente e consumo de compulsão.

A era hipermoderna se dá sob o signo do excesso e do extremo, que realiza uma “pulsão neofílica”, um prazer pela novidade que se volta constantemente para o presente2. O consumo acontece ao lado de outros fenômenos importantes que marcam e que estão no centro do novo tempo histórico: o espetáculo midiático, a comunicação de massa, a individualização extremada, o hipermercado globalizado, a poderosíssima revolução informática, a internet. O consumo cria seus próprios templos: os shopping centers, as novas catedrais das novas e velhas igrejas, e também, a seu modo, a própria rede mundial de computadores.

O hiperconsumo e sua doença (o consumismo) penetram insidiosamente em áreas da existência que, ainda numa idade moderna, são estranhas a ela: o amor, a amizade, a religião, a saúde, a política, a sabedoria, a espiritualidade, a educação. O consumo e suas relações de trocas pagas, lucro, rentabilidade, constante renovação, reciclagem e imediatismo ocupam terrenos que não pertencem a esta lógica arquetípica.

Consumo: tantos são seus deuses que é preciso evocá-los com cuidado, sem voracidade, para sentirmos sua interioridade, sua alma, sem sermos pegos em sua malha fina.

Consumo da velocidade, consumo da informação. Consumo do turismo: turismo da memória, turismo de aventura, turismo de reabilitação da saúde, turismo recreativo, turismo esportivo, ecoturismo. Consumo da moda, consumo do luxo, consumo gastronômico. Consumo do divertimento. Consumo cultural. Consumo emocional.

Consumo de móveis, de imóveis e de automóveis: a indústria automobilística internacional sabe produzir ícones de altíssima voltagem simbólica para a era da autonomia. Consumo da mobilidade, das viagens e dos deslocamentos geográficos rápidos. Ou permanentes: aqui, a fantasia de renascer em outro lugar, outra cidade, outro país, outra identidade – consumo de uma nova vida. Consumo identitário.

Consumo de utensílios domésticos, eletrodomésticos, eletroeletrônicos que liquidificam, batem, moem, trituram, misturam, assam, limpam, fervem, fritam, amassam, amolecem, passam e enceram para nós –sem nossas mãos, sem contato manual. Tocam sons, reproduzem imagens, processam informações. Excesso e profusão de automatismos também funcionando para a era da autonomia.

A moda, a morte, a saúde, a cosmética, a higiene e a limpeza são principalmente imaginadas hoje em dia também dentro da fantasia e das práticas do consumo. Nessas práticas, podemos entrever sua alma.

No capítulo da limpeza (pessoal e doméstica), por exemplo – que hoje se confunde ou tem seus caminhos imaginais entrelaçados com aqueles da saúde – percebemos toda uma cultura dos antibióticos, dos germicidas, dos antibacterianos, dos inseticidas, de tudo aquilo que “mata bem morto”, os antivirais, os antiretrovirais, os bactericidas, cultura dentro da qual estão também os saponáceos, os sabonetes, os sabões, os xampus, os detergentes, as águas sanitárias, os desinfetantes, os limpadores multiuso, o cloro: todos matadores. O hiperconsumidor mostra, na alma de seu consumo, a flechada de uma onda apolínea de assepsia, de controle total, de segurança total, de branco total. Nota-se na vida moderna uma preocupação obsessiva por inseguranças de várias naturezas: biológica, médica, patrimonial, moral, ética, familiar. A autonomia trouxe insegurança.

Essa lógica consumista se estende ao círculo dos protetores solares, dos preventivos de todas as linhas e atividades, preservativos, camisinhas, air bags, cintos de segurança, advertências sobre ingestão de alimentos, bebidas e fumo, bloqueadores solares, sensores, alarmes, detectores de metais, câmeras de vigilância, sistemas sofisticados de proteção patrimonial, de segurança residencial e seguros de vida, de saúde, de viagem.

À prova d’água, à prova de choque, resistente. Ética que nos prepara para “esperar o inesperado”: uma contradição em termos. Insegurança cotidiana, cotidiano da insegurança, coincidente com o fim dos referenciais estáveis tradicionais. Eis a era moderna na qual se insere a “sociedade de consumo”.

Mas o maior consumo talvez seja mesmo o consumo da autonomia, da faculdade de se governar por si mesmo, de instituir e reger as leis (nomos) pelas quais se governa a si mesmo. Autonomia é liberdade e aprisionamento ao mesmo tempo.

Autonomia: não preciso mais ir ao cinema e estar sujeito a horários, arranjos e endereços públicos e coletivos; eu possuo um home theater. Imprimo minhas fotos na impressora doméstica alinhada para isso. Faço meu jantar com o auxílio luxuoso de todos os eletrodomésticos que não param de reinventar-se, os processadores de comida aliados aos fornos de microondas; ou simplesmente compro o jantar pronto e congelado, estocado e prático, rápido. Faço meus filmes no computador pessoal.

Organizo e escolho as músicas que quero ouvir — a trilha sonora da minha vida — sem surpresas desagradáveis ou diferentes, simplesmente baixando arquivos de áudio da internet e armazenando-os em meu iPod. A telefonia está em minhas mãos, em qualquer lugar, é móvel, e com ela a impressão de contato por trás da fantasia de conectividade. A comunicação está toda em minhas mãos. Minha correspondência, agora por via eletrônica, está em minhas mãos (ou diante de meus olhos) na hora que desejo ou preciso, em qualquer lugar do planeta. E está em minhas mãos principalmente tudo aquilo que posso comprar pronto (ready-to-go): desde a comida – entregue em casa (delivery), ou então ao acesso rápido de uma corrida de carro (drive-through) – até medicamentos, entretenimento, companhia, sexo e roupas prêt-à-porter. Percebemos a enorme presença da fantasia de autonomia. E esta autonomia está a serviço da felicidade privada.

O nosso tempo é um tempo de escolhas. A “customização” cada vez mais intensa da maioria dos bens e dos serviços de consumo permite que eu diga como quero meu refrigerante, meu carro, meu jeans, meu computador.

A superindividualização também leva à autonomia, ou vice-versa, e impõe processos de escolha cada vez mais intensos e urgentes: “Os gostos não cessam de individualizar-se”3.

O senhor dos Portões (Mr. Gates) abriu as janelas (Windows) de um presente que requer, sim, definições (escolhas) cada vez mais “altas”, mais precisas, mais particularizadas, em quase tudo.

A própria identidade torna-se, no mundo hipermoderno, uma escolha que se dá num campo cada vez mais flexível e fluido de possibilidades: tribos, nações, culturas, subculturas, sexualidades, profissões, idades. Personas to-go. Autonomia: nomear-se a si mesmo.

O tema “pervasivo” da autonomia em nosso imaginário coletivo mais profundo engendra e produz nossa ligação com tudo que é automático, nossa paixão pelo automatizado, nos objetos e nas relações, nos serviços e na vida cotidiana, na alma e no corpo, na linguagem e na ação, e também nossa prisão nos automatismos — nossos padrões psicológicos automáticos.

Já se viu nisso um processo de distanciamento do mundo da matéria, onde quase tudo já trabalha por si, sem a intervenção de nossas mãos ou de nosso corpo. Às vezes, nem de nossos olhos. Mas é também possível ver nisso um mundo esquecido de coisas físicas que quer se animar, que deseja alma, e ver na alma um anseio compensatório ainda maior pela sedução física do mundo – pois a alma precisa do mundo.

No hiperconsumo, como advertiam os alquimistas, literaliza-se o físico no material. Precisamos consumir cada vez mais, e cada vez mais intensamente, aparelhos, automóveis, dispositivos, engenhocas, gadgets e, com eles, seus fantasmas.

Tudo a alma consome, e tudo pode ser consumido pela alma em seu eterno trabalho. Ou, tudo pode virar um vaso para fazer alma, como já nos afirmou James Hillman: “O vaso do cozinhar da alma aceita tudo, tudo pode se tornar alma; e ao tomar em sua imaginação quaisquer e todos os eventos, cresce o espaço psíquico”4.

Precisamos enxergar no consumo um vaso de fazer alma. Para isso, precisamos libertar nossa visão das preconcepções filosóficas, morais e psicológicas, que nos levam a entender no consumo apenas um patologizar mais intenso.

A superindividualização reforça um sujeito que, ao encontrar-se agora numa condição mais flexível, vive no ego a ilusão de uma ação mais consciente e livre no mundo. Esse sujeito é frágil, e aqui está o seu paradoxo. Seu patologizar é imenso, é intenso, e cresce na proporção do consumo, da autonomia e da liberdade: depressão, paranóia, compulsão, baixa auto-estima, competitividade extremada, pânico, suicídio, solidão, medo, estresse, sintomas psicossomáticos, hiperatividade, hiperconsumismo. Vulnerabilidade psicológica, desestabilização emocional.

O consumo flexibiliza e amplia os limites da experiência e até mesmo o espaço psíquico da liberdade. O consumo faz parte da atração da alma pelo desejo, de seu envolvimento com o desejo. Faz parte do mito de Eros e Psiquê. E o desejo aqui é pelas coisas do mundo — desejo que, em última instância, deseja de verdade animar o mundo, torná-lo alma.

A lógica consumista parece ser a de um hipernarcisismo. Se existem deuses nas nossas doenças, quem são eles no consumismo?

Comecemos pela necessidade: temos necessidade de quê? De quanto? Quando? Não sabemos mais ao certo, é claro. As medidas enlouqueceram. Movemo-nos agora num mar de necessidades: pseudonecessidades, necessidades artificiais, necessidades básicas, necessidades estrategicamente plantadas pelo marketing, necessidades que não sei se tenho, necessidades futuras, até chegar ao desnecessário, o extraordinário que é demais. A necessidade delira.

Ananke

A necessidade é arquetípica e tem um lugar na alma, um nexo psíquico mais profundo. Ananke, a Necessidade, rege os movimentos da alma, é a personificação da força constrangedora dos poderes do destino — os decretos do destino físico e do destino psíquico. Longe ou separada da alma, torna-se escrava da ânsia, do desejo cego, a que chamamos ansiedade (que tem a mesma raiz etimológica que ananké). Ansiedade, em essência, é desejar profundamente… coisa nenhuma!

Afroditesedução é o terreno de Afrodite, e ela, banida da civilização secular, destituída de um lugar de honra dedicado à beleza e ao amor sensual, retorna no apelo ao consumismo puro. A sedução das coisas pelas coisas: literalismo, ânsia cega pelo mundo, a que chamamos… ansiedade. Sempre que somos seduzidos, sabemos que é seu o trabalho na alma, alinhando-a com o desejo, com Eros.
Já que hoje, como disse Hillman, o “shopping center e o catálogo de compras são os lugares onde Afrodite trabalha sua sedução”5, é lá, na embriaguez do consumo, na hiperescolha, que encontramos a fantasia da conquista do mundo, do deleite sensual pelo mundo.

Mas o jogo da sedução, na verdade, está em tudo, em todas as pontas da sociedade de consumo; não podemos dele escapar, e já nada fazemos sem sua presença. A ampliação das necessidades também tem a ver com ele, assim como a lógica do efêmero e da novidade na qual estamos mergulhados. E também a pornografia, a inflação erótica, o sexo serial: consumo sexual. Afrodite furiosa está conosco desde o amanhecer até quando nos deitamos, adentrando o mundo dos sonhos e a noite escura da alma. A sedução explode.

Na troca, enxergamos a “inflação hermética” de que também fala Hillman, a cultura midiática de massa. Hiperconectividade, hipermercado, hiperconsumo: tudo se liga. Supertroca, super-comércio: de informação, de serviços, de produtos, de afetos, de imagens, de mensagens. Tudo pago. Devo manter-me informado, trocando o tempo todo, “estar ligado” – ligado/desligado, on/off: eis o dilema. Comércio de tudo, tudo se torna comercial.

O mercado se apossa do que não estava no mercado, e que talvez a ele mesmo não pertença; tudo é absorvido pelo modelo consumista: amor, relações, espiritualidade, direitos humanos etc. A hipertrofia mercurial da comunicação, da informação, reflete uma aceleração da troca. A troca dispara.

É nesse campo mercurial que vemos como a lógica do consumo nos apresenta hoje ao jogo entre desuso (tempo acelerado) e reuso (tempo lento). Use e abuse virou desuse (descarte) e reuse (recicle). Descartar ou reciclar? A tensão entre o descartável e o reciclável mostra-nos o delírio hermético na sociedade da hipertroca.

A prótese do prazerA face mais nervosa do consumo é seu sumo, o gesto consumista por excelência: a compra, propriamente dita.

Comprar é um impulso ascendente, de natureza espiritual, que nos joga no eixo entre elevação e mergulho. Mas é também um foco de fantasia, portanto um lugar de alma, nunca um gesto puro. Diga-me o que compras e te direi quem és! Direi também como patologizas e como imaginas a liberdade.

Assim, comprar, como qualquer ação arquetípica, também está cheia de deuses: a compra heróica e suada, a compra racional saturnina feita em vezes, a compra prazerosa e sensual, de impulso, a compra culpada ou martirizada, a compra que rejuvenesce, a compra festiva e de expansão da personalidade, a compra pornográfica, a compra generosa e a retensiva, a compra para o outro, a compra que é um presente, um modo de dizer algo.

A febre de comprar nos faz pensar, como sugeriu Lipovetsky, que “ela seja uma compensação, uma maneira de consolar-se das desventuras da existência, de preencher a vacuidade do presente e do futuro”6. O frenesi das compras então funciona para nossa longa solidão egóica como “simulacro de aventura”, o fantasma da obra, pequena loucura cotidiana, a prótese do prazer.

A compra é a magia do efêmero. É asa, é brasa. É futuro, promessa, desejo de mudar, intensificação, momento de morte. É o fim da produção, quando as coisas são finalmente absorvidas pela psique.

A compra, ao contrário do que se poderia pensar, dissolve o ego em alma, dissolve o ego heróico em sua fantasia de morte. Comprar é o que resta. Comprar é nosso modo de fazer o mundo virar alma.

Gustavo Barcellos é psicólogo pela PUC-SP; mestre em psicologia clínica pela New School for Social Research de Nova York; membro analista da Associação Junguiana do Brasil (AJB) e da Associação Internacional de Psicologia Analítica (IAAP). Autor de Jung, Editora Ática e de Vôos e raízes: ensaios sobre imaginação, arte e psicologia arquetípica, Editora Ágora. Editor da revisto Cadernos Junguianos da AJB.


1          C. G. Jung, CW 13, §54: “Os deuses tornaram-se doenças”.
2          “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto — o que mais não é hiper? O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superlativa? […] Tudo se passa como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper.” Gilles Lipovetsky, Os tempos hipermodernos, Editora Bacarolla, 2004, p. 53, 54, 56.
3          Gilles Lipovetsky, O império do efêmero, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 174.
4          James Hillman, Re-Visioning Psychology, Nova York: Harper & Row, Harper Colophon Edition, 1977, p. 69.
5          James Hillman, “Loucura cor de rosa ou por que Afrodite leva os homens à loucura com pornografia”, em Cadernos Junguianos, Revista anual da Associação Junguiana do Brasil, São Paulo, nº 3, 2007, pp. 7-35.6          Gilles Lipovetsky, Os tempos hipermodernos, Editora Bacarolla, 2004, p. 79.

Nenhum comentário:

Postar um comentário